27.1.09

Na ponta dos pés


Uma última pirueta, dois alongamentos e a aula acabou. Para ela não. Depois do suor e dos insultos, depois das cãimbras e feridas nos pés, depois das quedas e nódoas negras ela fica a sós com o espelho. Nua e descalça dança ao som dos seus próprios passos enquanto o resto do mundo fuma um cigarro. Agora caiu... Já está de pé.
No mais íntimo de todos os movimentos, os seus membros moldam-se à dor que quase não sente. O corpo arqueado, as linhas perfeitas e a elegância dos gestos pueris enchem o estúdio de sustenidos e bemóis para formar uma escala desconhecida. Não há ninguém. É como se dançasse no fundo do mar: os braços envolvem a água e os pés beijam a areia; um diálogo de sensualidade entre ela e o infinito.

O tempo passa, os músculos morrem e ela deixa de poder dançar. Mas ainda é bailarina. Lá fora, os cigarros apagam-se. E eles acendem outro.

20.1.09

Turistas de armário


Devagar, bem devagarinho, caminho nos nós dos dedos, não vá ele ouvir-me. A cada passo, a madeira chora o peso dos meus pés e eu rezo para que ele ainda esteja a dormir. Estico o braço para abrir a porta, "É agora. Não sejas cobarde. Um, dois três!". Nada. Espreito entre as fendas dos dedos que escondem o meu olhar marcado, de quem não dorme por terror. Não há sinal dele. Sinto um martelar compulsivo e regular no peito enquanto vasculho por vestígios da sua estadia. Nem uma dedada. O monstro do armário não me veio visitar hoje. O meu peito liberta-se, assim, de três quilos e meio. Lágrimas de alívio escapam-me e molham os meus lábios quentes. Dou por mim na janela a gritar que estou livre.
Festa despropositada. Se calhar, o monstro foi só lanchar.

7.1.09

Um dia destes...

Um dia destes vou amar-te.
Vou despir-me de tudo o que é meu, para que meu sejas só tu.
Vou deixar que o recôndito mais profundo do meu coração se alimente de ti, só de ti.
Vou viver numa verdadeira quimera de sonhos e fantasia.
Vou permitir-me chorar por ti.
Vou andar contigo de mãos dadas pela Lua.
Vou segredar-te a história da Carochinha até adormeceres.
Vou lançar-me de uma montanha só para te ouvir gritar "Não! Não vás! Eu AMO-TE!".
Vou adormecer no teu peito nú.
Vou pagar ao melhor perfumista para que isole num frasco o teu cheiro.
Vou beijar-te debaixo de uma tempestade tropical.
Vou ser feliz.
Chama-me louca.
Um dia destes chamo-te mentiroso.

5.1.09

Mergulho ao fim da tarde


Foi como mergulhar. Fácil, instintivo. Eras a água: doce, transparente e envolvias-me com toda a imensidão gélida do teu corpo. No início, o choque foi aterrador. Fez-me tremer. Queria fugir. Mas depois de me habituar, era lá fora que o espaço parecia frio e inóspito. Estava-se tão bem a flutuar nas tuas palavras que desejei poder entornar um pouco de ti numa garrafinha para te levar sempre comigo e beber de ti quando bem me apetecesse. Mas não te queria deformar, não. Então fui-me embrulhar numa toalha. À noite, nos lençóis. Nos meus cabelos, nos meus braços, embrulhei-me no ar mas, oh, estava sozinha outra vez. Estou sempre sozinha. Contigo também estava sozinha. Mas era bom, afogavas este meu medo. Agora que me fui do teu abraço, ele renasceu. Mais forte que nunca.