28.2.10

É domingo



Aos domingos gosto de acordar cedo, pouco depois do despertar da aurora. Puxo a roupa da cama até ao nariz e deixo-me ficar deitada durante uns minutos secos, ocos. Um feixe de luz pálida atravessa a fina friesta entre os cortinados. Timidamente, vai avançando na madeira até atingir a zona do cobertor por cima dos meus pés.
Acabo por me levantar. Caminho no meu pijama cor-de-rosa de flanela, muito lentamente. A casa também está agora a acordar: solta pequenos suspiros de dor em sincronia com os meus passos. Lembro-me então de quando era pequena e gostava de terminar aqueles minutos de preguiça matinal na cama dos meus pais. Abria com muito cuidado a porta, em bicos-dos-pés (agora ela parece-me tão pequena), mas acabava sempre por ser denunciada pelo seu chiar agudo. A minha mãe, sempre de sono leve, abria instantaneamente os olhos e sorria. Voltava a fechá-los para depois se chegar mais para a pontinha da cama, criando assim um pequeno nicho entre ela e o meu pai, para onde eu subia. Mais tarde, o meu irmão descobriu esta minha estratégia dominical e passou a fazer o mesmo. Tornou-se uma rotina. Os quatro na cama, aos domingos de manhã. Quando já não havia mais sono, alguém mencionava as palavras mágicas "pequeno-almoço". E como eu adorava os pequenos-almoços de domingo...eram os únicos em que havia tempo para saborear torradas exageradamente lambidas de manteiga, que o meu pai fazia enquanto contava anedotas.
Não me lembro da última vez em que estivemos todos juntos na cama, ao domingo. Sinto, subitamente, uma vontade enorme de abrir a porta do quarto dos meus pais e de ocupar o espaço na cama entre eles. Em vez disso, desço para a cozinha e faço as minhas próprias torradas. Sem anedotas. Quase sem manteiga. Como-as. Sozinha.

1.2.10



Mal-me-quer? Bem-me-quer?

Muito. Pouco. Nada.

Tombam pétalas no chão, à medida que vou despindo as flores, uma a uma, tão fria e cruelmente. "Lembra-me a torneira do lava-loiças lá de casa, que pingava lágrimas custosas que não queriam cair logo...rodeavam o bico primeiro, hesitando, até acederem num desgosto pesado. De minuto a minuto uma melancolia transparente achatava-se no ralo..."

Mal-me-quer.

Atiro a enésima flor para o chão. Apetece-me arrancar os cabelos como se fossem pétalas. Mas porque é que eu insisto?
"Só mais uma vez", murmuro-me. Pego numa última flor. A mais bonita do jardim. Repito o procedimento, desta vez delicadamente, tornando numa carícia cada gesto meu. Tombam, de novo, pétalas no chão.

Bem-me-quer
.

Beijo-a (-te). Guardo-a (-te) no bolso. A minha flor.

16.12.09


Sou eu e tu. São eles. São eles connosco. São vocês comigo. Sou eu, tu, ele, ela... Somos nós. Grandes, enormes, gigantes. Perfeitos.
Não temos grande passado. Talvez nem tenhamos futuro. Mas o presente é nosso. É meu e do teu sorriso, meu e do cheiro dela, meu e do colo dele, meu e das vossas mãos, braços, pernas. Meu e vosso. Meu e nosso.
Não sei o que somos...Se somos o sol da madrugada ou a ténue luz fria da noite. Se somos a música ou a dança. O vermelho ou o branco. O vento de Outono ou o orvalho de Primavera. Sei que somos. Sou eu e tu. São eles. São eles connosco. São vocês comigo. Sou eu, tu, ele, ela... Somos nós.
Vivo no vosso conto de fadas. Vivem no meu. São o que mais importa. São a única coisa que importa. São o "felizes para sempre", mesmo que o sempre não nos pertença. Somos como somos. Somos assim. Grandes, enormes, gigantes. Perfeitos.

30.11.09


"Pára tempo, pára (97). Pára tempo, pára (98). Pára tempo, pára (99)." murmuro eu na noite escura, embrulhada em mim mesma e na minha podridão de vida. Mais uma lágrima. A outra entretanto secou. "Pára. Pára.(100)" Agarro os joelhos firmemente contra o peito e seco os olhos na flanela do pijama. "Por favor".

E o tempo parou.

Certifico-me de que tudo está quieto. Está mesmo tudo quieto. Todo e qualquer movimento cessou, todas as expressões se congelaram, como numa fotografia a dimensões reais. Então, descalça pelas ruas imóveis, passeio o meu corpo doente. Não em vão, não. Não vagueio sem destino. Sei exactamente onde me levam os meus passos.
É ver-te assim imóvel que me cura. Exploro cada traço do teu rosto com a ponta dos dedos, primeiro, e depois com os lábios. Num ímpeto de algo que não sei se é raiva se é paixão, arranco-te as roupas do corpo hirto. Choro (eu choro muito). Sinto repulsa de mim própria. Volto a vestir-te, componho o teu cabelo entretanto desalinhado e beijo-te a testa, agora sem paixão, agora sem desejo. "Adeus, meu amor".

Recuo e o tempo avança.

Estou onde sempre estive"Pára tempo, pára (101). Pára tempo, pára (102)." Podia ficar nisto a noite toda. Mas o tempo não pára. Nem eu. Nem tu.

9.11.09

"I'm not taking my pills today"

30.9.09

Pirilampos e goludices



Quando for grande quero ser criança.
Quero fazer uma birra à porta de casa. Quero juntar pirilampos numa caixa de fósforos para o caso de não haver electricidade. Quero que os tios dos primos dos maridos das minhas avós, alguns de risca do cabelo na orelha, alguns de bigode, alguns de boquilha, olhem para mim com um olhar surdo e perguntem "Que idade tens tu já?". Quero rapar o tacho do arroz doce com o indicador vagaroso. Quero mostrar às meninas lá da escola que já sei fazer nós nos cordeis das sapatilhas. Quero apoiar a abolição permanente da sopa às refeições, substituindo-a por arroz doce. Quero que falte a luz para eu libertar os pirilampos, introduzindo na escuridão uma fosforescência salvadora. Quero que os tios dos primos dos maridos das minhas avós, alguns de risca do cabelo na orelha, alguns de bigode, alguns de boquilha, arregalem os olhos quando eu disser que já tenho quase 7 anos e meio. Quero esperar meia hora na fila do baloiço, só para me balançar nele por 10 segundos. Quero irritar o meu pai de propósito, num dia de peixe cozido ao jantar, só para que ele me diga "Vais para a cama sem comer".Quero fazer as pazes com ele com um medo terrível que me proíba também de comer a sobremesa.

28.9.09



Toda a vida é um sonho. Ninguém sabe o que faz, ninguém sabe o que sabe. Dormimos a vida, eternas crianças do Destino. Por isso sinto, se penso com esta sensação, uma ternura informe por toda a humanidade infantil, por toda a vida social dormente, por todos, por tudo.

Livro do Desassossego