30.9.09

Pirilampos e goludices



Quando for grande quero ser criança.
Quero fazer uma birra à porta de casa. Quero juntar pirilampos numa caixa de fósforos para o caso de não haver electricidade. Quero que os tios dos primos dos maridos das minhas avós, alguns de risca do cabelo na orelha, alguns de bigode, alguns de boquilha, olhem para mim com um olhar surdo e perguntem "Que idade tens tu já?". Quero rapar o tacho do arroz doce com o indicador vagaroso. Quero mostrar às meninas lá da escola que já sei fazer nós nos cordeis das sapatilhas. Quero apoiar a abolição permanente da sopa às refeições, substituindo-a por arroz doce. Quero que falte a luz para eu libertar os pirilampos, introduzindo na escuridão uma fosforescência salvadora. Quero que os tios dos primos dos maridos das minhas avós, alguns de risca do cabelo na orelha, alguns de bigode, alguns de boquilha, arregalem os olhos quando eu disser que já tenho quase 7 anos e meio. Quero esperar meia hora na fila do baloiço, só para me balançar nele por 10 segundos. Quero irritar o meu pai de propósito, num dia de peixe cozido ao jantar, só para que ele me diga "Vais para a cama sem comer".Quero fazer as pazes com ele com um medo terrível que me proíba também de comer a sobremesa.

28.9.09



Toda a vida é um sonho. Ninguém sabe o que faz, ninguém sabe o que sabe. Dormimos a vida, eternas crianças do Destino. Por isso sinto, se penso com esta sensação, uma ternura informe por toda a humanidade infantil, por toda a vida social dormente, por todos, por tudo.

Livro do Desassossego

21.9.09


Vem quase nua, rasgada de dor. Traz uma cruz de sangue no peito. Sem poder mais carregar o corpo, cai de joelhos no chão. Arranca do chão um pedaço de terra seca, seca como as suas lágrimas, seca como o seu coração. Enfia-a na boca, como se se empanturrasse do algo que lhe falta no estômago. Grita, com toda a sua voz e com todas aquelas que não lhe pertencem, um grito mudo. .. Está só?

Há mulheres que lutam todos os dias.

8.9.09

O fado nosso de cada dia


Chiu...Está a dar música no meu peito. Ouço o seu eco na minha mente semi-vaga. O silêncio é a minha inspiração. O escuro, a minha pauta. Sou a maestrina e marco o compasso vigorosamente dando sacudidelas no ar pesado. Entram agora os violoncelos que choram notas graves. O piano repete a melodia de base éne vezes à medida que os dedos finos e compridos deslizam pelo preto e branco.
Estão a tocar-te, ouves?. O contrabaixo marca os teus passos, os violinos desenham os teus cabelos. Ah, o clarinete...os teus olhos-de-avelã. O flautim guincha pelos teus lábios doces (eu decorei-lhes o sabor) e tudo se cala quando chega a tua voz de solista.
És a mais bela das óperas. Ou serás fado? És fado. Posso acompanhar-te? Prometo ser afinada. Dá-me um lá. Dá-me a mão. E agora silêncio que se vai cantar o fado.